Joguei The Last of Us pela primeira vez em agosto de 2017 e foi uma paixão avassaladora (escrevi a respeito aqui).
Eu era iniciante no Mundinho Games do PlayStation©, tinha acabado de comprar um console pra rejogar Life is Strange, mas 11 entre 10 pessoas já me recomendavam fortemente o game. Desde então, The Last of Us virou um dos meus jogos favoritos da vida, principalmente com o lançamento da Parte II em 2020, que eu considero ainda melhor que a primeira.
Não à toa, esperei ansiosa pela adaptação assim que a anunciaram.
Se me lembro bem, ignorando as polêmicas ridículas envolvendo a aparência da Bella Ramsey como Ellie, a primeira temporada da série foi bem avaliada pelo público comum. Já a segunda temporada, que terminou neste último domingo (25/05), deixou as redes sociais pegando fogo, em especial o esgoto do Twitter.
Confesso que, como fã tanto dos jogos quanto da série (já deixando claro), tenho acompanhado essas polêmicas com um misto de curiosidade e, admito, um pouco de frustração também.
Uma coisa que salta aos olhos é que a maior parte das críticas mais fervorosas, na minha percepção, vem de quem jogou. Quem está conhecendo a história agora, pela série, parece estar adorando, sem ter o peso da comparação.
E isso levanta a questão: a série está realmente falhando ou apenas contando a mesma história de um jeito diferente? E até que ponto essa diferença é aceitável?
A princípio, julguei impossível adaptar The Last Of Us Parte II
⚠️ Atenção: daqui pra baixo é uma mina de spoilers do game e da série.
Um dos aspectos mais brilhantes (e polêmicos) de The Last of Us Parte II como jogo é algo que a série da HBO enfrenta um desafio monumental para adaptar: a experiência de literalmente ser forçado a jogar como Abby, a assassina de Joel.
Joel, você é o desgraçado que matou meu pai, mas é bonitão. Já falei que você é bonitão? Falei, Joel?
Lembro perfeitamente da minha reação quando, após horas de gameplay intenso perseguindo Abby como Ellie, o jogo subitamente me colocou no controle da “vilã”.
Meu primeiro instinto? Revolta. Indignação. Vontade de jogar o controle do PS4 na parede. “Não vou jogar com essa cretina”, pensei. E essa era exatamente a reação que a Naughty Dog (desenvolvedora do game) esperava.
O brilhantismo está justamente aí. O jogo não te dá escolha. Se você quer continuar a história, precisa ser a Abby. Precisa controlar seus movimentos, lutar por sua sobrevivência, proteger seus amigos. É uma imposição narrativa que só o meio interativo dos jogos consegue proporcionar com tanta eficácia. Não é só assistir à história dela, mas viver essa história.
E então, algo fascinante acontece. Hora após hora, missão após missão, você começa a entender a Abby. Você conhece seu passado, suas motivações, seus amigos, seus medos. Você vê o mundo pelos olhos dela. Você protege Lev e Yara com a mesma intensidade que antes protegia Ellie. E, talvez o mais perturbador: você começa a questionar quem realmente é o “vilão” nessa história, e ele depende da perspectiva de cada personagem.
Quando finalmente chega o confronto final entre Ellie e Abby na praia, no terceiro ato do jogo, você já passou pelo processo completo de empatia forçada. Você não quer que nenhuma das duas morra. Você entende ambos os lados. E isso é de quebrar o coração.
Bom, essa foi a experiência que eu tive e também imagino que era o que a Naughty Dog esperava; uma experiência completa enquanto jogadora. E na real, sinto um pouco de pena de quem não vivenciou isso e odeia a Abby até hoje, inclusive.
Acho que essa mecânica de gameplay não é apenas uma escolha narrativa, mas uma declaração filosófica sobre empatia, perspectiva e a natureza cíclica da vingança. É o jogo dizendo: “Você não pode julgar sem conhecer o outro lado. E agora que você conhece, como se sente?”
E aqui está o grande desafio para a adaptação televisiva: como replicar essa experiência quando o espectador é passivo? Na TV, podemos mostrar a história de Abby, podemos dedicar episódios inteiros à sua perspectiva, mas nunca teremos aquele momento crucial em que o jogador é forçado a abandonar seu julgamento e literalmente caminhar nos sapatos do “inimigo”.
A série pode (e deve) mostrar a humanidade de Abby, seu relacionamento com as pessoas que ama, seu sofrimento. Mas o espectador sempre terá a distância confortável da tela, a capacidade de manter seu julgamento intacto. Não há o desconforto transformador de ter que ativamente proteger e lutar como alguém que você foi condicionado a odiar.
Não estou dizendo que a HBO não vai conseguir isso, até porque acho muito difícil não simpatizar com alguém que salva uma zebra presa em um arame farpado e adota um menino trans, masss… por mais brilhante que fique a adaptação, essa experiência específica – esse exercício forçado de empatia que o jogo proporciona – permanecerá como algo único do meio interativo.
É uma prova do poder dos videogames como forma de arte e como ferramenta pra explorar a complexidade moral humana.
No final, The Last of Us não é bem um game sobre vingança. É entender que podemos ser o mocinho ou o vilão na história de alguém. É ter capacidade de ver além do nosso próprio sofrimento e reconhecer a humanidade no outro, mesmo quando esse outro nos causou dor
Uma lição que, ironicamente, ganha mais peso justamente porque não temos escolha a não ser aprendê-la.
Mas esse impacto no espectador a gente vai ver só em 2027, no mínimo, quando a terceira temporada estrear.
A arte (complicada e às vezes irritante) de adaptar
Dito tudo isso, quando a segunda temporada começou, eu achei que ia sofrer bastante sendo Jurídico Abby Anderson, mas tô sofrendo sendo simplesmente Jurídico The Last of Us. 🤡
Antes de mergulhar de cabeça nas polêmicas, vale reforçar: adaptar não é copiar e colar. É traduzir uma experiência pra outra mídia, com regras, limitações e possibilidades distintas. Como eu disse aí em cima, um jogo como The Last of Us Parte II, com suas 25 horas de gameplay imersivo, onde você controla os personagens, é fundamentalmente diferente de uma série de 8 ou 10 horas, onde você é um espectador.
Craig Mazin e Neil Druckmann (o próprio diretor dos jogos) sabiam disso e avisaram que haveria mudanças. A justificativa de que “a série não permite controlar personagens diferentes” faz sentido tecnicamente. Mas a grande questão que paira no ar é se as mudanças escolhidas serviram para enriquecer a história ou para diluí-la, talvez tornando-a mais palatável para um público mais amplo.
É crucial entender que ser diferente do jogo não significa, necessariamente, ser ruim. Uma adaptação pode tomar liberdades e ainda assim ser excelente. Veja o exemplo de O Iluminado: escrevi aqui sobre como a adaptação do Kubrick mudou inúmeras coisas do livro do Stephen King e ainda assim se tornou um clássico do terror.
O próprio episódio de Bill e Frank na primeira temporada é outro exemplo, uma vez que 90% daquilo não acontece no jogo.
O problema para os fãs do game, aqui, são mudanças que parecem alterar a essência dos personagens ou o tom fundamental da obra.
Mudanças que dividiram opiniões
A lista de diferenças entre a segunda temporada e o jogo é grande.
Na captura e morte do Joel, quem estava com ele é o Tommy, e não a Dina. A sede de vingança da Ellie é quase imediata e muito mais visceral. Na série, tivemos uma batalha em Jackson, um salto temporal, a reconstrução da cidade… Mudanças que alteraram o ritmo e talvez o impacto inicial da fúria da Ellie.
Em suma, a estrutura da jornada de vingança mudou. A criação do Conselho de Jackson, a postura inicial mais pacificadora do Tommy e a decisão de Ellie e Dina partirem juntas desafiando o Conselho, tudo isso centraliza mais a comunidade, mas se distancia da jornada solitária e obsessiva que Ellie empreende no jogo em seus primeiros momentos.
O desenvolvimento da relação entre Ellie e Dina também seguiu um caminho diferente, com a série alterando o timing de momentos chave e até a forma como a Dina descobre sobre a imunidade da Ellie. No jogo, acontece quando a máscara da Ellie quebra enquanto estão num lugar cheio de esporos; na série, Ellie oferece o braço pra um infectado morder e desviar sua atenção da Dina. Eu gostei, especialmente da sequência que vem depois, com a Dina acordada vigiando se ela ia se transformar, culminando na revelação de que Dina está grávida, numa ~cena de amor intenso~ e numa manhã fofinha.
De novo: são mudanças, mas mudanças que enriquecem a história ou a diluem? Pra mim, é a primeira opção. Pelo menos nesse caso.
Outros pontos notáveis incluem a ordem dos eventos e das mortes. Na série, Nora não é a primeira pessoa que Ellie mata em sua busca por vingança, diferente do jogo, onde essa morte marca um ponto de não retorno brutal logo cedo. A conversa na varanda entre Joel e Ellie, um momento crucial que ocorre perto do final do jogo, foi antecipada pra essa temporada.
E não podemos esquecer a captura de Dina e Ellie pelos Lobos (WLF), um arco que no jogo é tenso e abrange a morte da Estrela, mas que na série foi adaptado de forma diferente (talvez menos impactante para alguns). No episódio, certa foi Estrela de ficar quietinha na dela dentro da loja de música, visto que ela é uma égua, e não uma jumenta.
Até mesmo personagens secundários como Seth tiveram seu papel alterado. No jogo, sua participação é mínima e serve para expor sua homofobia, levando Joel a ser destratado pela Ellie na frente de todo mundo na festa de ano novo. Na série, ele ganha mais destaque, apoia Ellie e oferece ajuda, levantando questionamentos sobre uma possível e talvez desnecessária tentativa de redenção.
Pois eu gostei, rss. E não seria o “preconceituíche” dele no jogo uma forma de redenção também, afinal? Galera reclama demais, tá doido. Quer igualzinho ao jogo? Pois então jogue a caralha do jogo!
A mudança de tom: goodbye darkness, my old friend?
Para além das mudanças pontuais na trama, talvez a maior fonte de estranhamento para quem jogou seja a diferença geral de tom. The Last of Us Parte II é uma obra sombria, brutal, violenta e desconfortável. Ela não tem medo de mostrar a feiura da vingança e a escuridão que consome seus personagens. A série, por outro lado, parece frequentemente tentar suavizar esses aspectos.
Essa sensação ficou particularmente forte no último episódio. Ver Ellie questionando se Nora realmente mereceu ser torturada, ou afirmando que matou Owen e Mel “sem querer” (uma mudança drástica em relação ao jogo, onde ela mata Mel intencionalmente antes de saber da gravidez), soa como uma tentativa de tornar a protagonista mais “aceitável”, mais “heroica” aos olhos do público geral. Particularmente, essa foi a minha grande decepção.
Mais uma vez: entendo que adaptações precisem fazer concessões, mas mudar a essência da jornada moral da Ellie foi algo difícil de engolir. Há quem pense que é pra humanizar a personagem, mas não consigo vê-la mais humana que no próprio jogo, em que é complexa, falha, muitas vezes monstruosa em suas ações, mas suas motivações são compreensíveis dentro daquele universo brutal.
A Ellie da série, especialmente nesta temporada, parece por vezes hesitar demais, duvidar demais, quase como se os roteiristas estivessem com medo de mostrar sua capacidade pra crueldade.
Ela também parece muito menos badass do que a Ellie que conhecemos nos jogos. Gente, A ELLIE DO GAME É UMA DEMÔNIA! Na adaptação, parece uma adolescente que frequentemente precisa de babá (Jesse, Dina, Tommy), que não sabe se virar direito sozinha, o que contradiz o tempo que passou sobrevivendo ao lado de Joel e seu próprio treinamento pela FEDRA.
A força e a independência feroz tão características parecem ter sido atenuadas. Só vou conseguir entender essa mudança se a terceira temporada ou quarta temporada apresentar uma justificativa muito forte, e olhe lá.
A estética da amargura?
E já que estamos falando de incômodos, não dá para não mencionar alguns detalhes estéticos que, pra muitos, quebraram a imersão.
Roupas que parecem limpas demais, com menos manchas do que as minhas depois de usar Vanish (e olha que nem estamos num apocalipse zumbi!). Dina frequentemente com uma escova impecável nos cabelos. Maria usando extensões de cílios e outras personagens (tipo a Gail) com maquiagem que resistiu bravamente a mais de 20 anos de colapso da civilização (e do prazo de validade).
São detalhes? Sim. Mas em um universo que se propõe tão realista e brutal, esses pequenos deslizes estéticos acabam destoando e lembrando o espectador de que aquilo é, afinal, uma produção de TV.
O veredicto final
Então, qual o saldo final? No fim das contas, na minha opinião, a segunda temporada de The Last of Us é uma boa série. Tem atuações excelentes (Pedro Pascal, Bella Ramsey e Kaitlyn Dever – mesmo em suas poucas cenas – brilham), uma produção de altíssimo nível e momentos genuinamente emocionantes. Ela consegue adaptar muuuitos dos eventos principais do jogo de forma competente.
Porém, para quem viveu a experiência visceral e transformadora do game, mudanças como as que afetam o tom geral e a caracterização da Ellie deixam um gosto agridoce.
Em resumo: a série é boa, envolvente, bem feita. Mas o jogo é uma obra-prima.
Talvez o maior mérito da adaptação seja justamente este: ampliar o público e manter viva a conversa sobre The Last of Us, seus personagens complexos e seus temas difíceis. E nos fazer voltar ao jogo para reviver a experiência original em toda a sua glória de violência e incômodo.
Passando pra deixar um comentário mesmo sem ter visto além do primeiro episódio só pra poder engajar 😀
Gosto do background gamer envolvido com a história do jogo (e agora o game)
Queria então ler uma crítica sua aqui sobre o filme do Mario só poder acompanhar sua jornada nintendista desde os primórdios até as rages atuais com o MK8 XD
Acabei lendo tudo, não ligo tanto pra spoiler. Amei o texto, bem elaborado e, acho, o mais bem equilibrado que vi até agora, incluindo os vídeos de críticos do YouTube. Mesmo sem ter jogado, o que vc descreveu fez total sentido pra mim.
Eles quiseram atenuar a sede de vingança da Ellie pra não tirar a simpatia do público por ela. Ou por terem medo de que a víssemos como vilã. Acho uma pena essa falta de ousadia. A temporada poderia ter saído do mediano e ficado grande.