Descrito por sua produtora britânica Ninja Theory como um jogo "AAA independente", Hellblade foi lançado em agosto de 2017 para PC, PS4 e Xbox One e já ganhou 5 prêmios no BAFTA Games 2018. Sem qualquer prévia da história ou tutorial, a não ser dos comandos dos botões, o game começa com uma guerreira celta em uma canoa em direção a um lugar qualquer, cercada pelos créditos da produção, que navegam tão lentamente quanto ela, já mostrando para o público uma palhinha da magnífica direção de arte. Descobrimos, então, que a guerreira em questão se chama Senua e está em viagem para Hel, um dos nove mundos da mitologia nórdica, a fim de salvar a alma de seu amado e falecido Dillion. De resto, sua história, suas dores e seus sonhos são revelados pouco a pouco, exceto por um detalhe importante e que é o chamariz desse jogo: Senua sofre de psicose severa, e o jogador vai sentir isso junto a cada passo que ela dá, em uma imersão fantástica que une temática celta/nórdica e psicologia.
Levando isso em consideração, se eu tivesse que definir Hellblade em uma única palavra, seria
A narrativa de Hellblade começa pouco após a invasão dos vikings na ilhas Orkney, no século VIII, onde a população local de celtas desapareceu após um ataque – eventos que realmente aconteceram na História, investigados pelos realizadores do jogo com a ajuda de um professor de estudos nórdicos da Universidade de Cambridge. Outros profissionais e pessoas também fundamentais para a construção do game foram psiquiatras e pessoas com experiências de psicoses. E é por isso que a coisa toda é bem perturbadora: conseguiram, imagino eu, acertar em cheio nas representações, provocando um mergulho profundo do jogador no inferno pessoal de Senua, que ela chama de "escuridão". A cada enfrentamento de um trauma da protagonista, a gente tenta distinguir o que é realidade do que é alucinação, numa atmosfera potencializada pelas múltiplas vozes que ela - e nós - escutamos constantemente. Funcionando mais ou menos como aquela ideia do anjinho e do diabinho nos tentando, elas ora caçoam de Senua, ora incentivam ela a continuar em sua missão e, ainda, ajudam no combate que você terá com inimigos, avisando quando é preciso esquivar, uma vez que não há visão panorâmica nessas horas. Por isso, é ES-SEN-CI-AL que se jogue Hellblade com fones de ouvido, escutando o som em 360 graus. Há momentos em que saber de onde ele tá vindo pode salvar a vida de Senua.
(Também é importante manter o Fisk em dia, já que várias coisas que as vozes falam não têm legenda.)
Trecho do meu jogo
OS PUZZLES, COMBATES E COLECIONÁVEIS
Assim, só pra manter o clima, sabe.
Mas beleza. Menina Senua tá seguindo seu caminho e pãnz, quando, claro, encontra obstáculos vivos – conhecidos como brutamontes que emitem sons guturais, armados com espadas e machados. Mas tudo bem, porque nossa pequena grande guerreira foi treinada o suficiente pra conseguir enfrentá-los. O resto é com você. Os combates de Hellblade são, como tudo nessa desgrama de jogo, tensos, mesmo que simples. Os comandos consistem em basicamente se esquivar, se defender com a espada, chutar e realizar dois tipos de golpes. Fazer leitura corporal é prever movimentos do outro e planejar os seus (coisa que demorei a aprender, de afoita que sou). É possível fazer a defesa com sua amiguinha no exato momento em que o oponente te ataca com a arma dele, provocando um contra-ataque de Senua em câmera lenta e, também, é possível congelar o tempo sempre que aparece um símbolo brilhante de amuleto no canto da tela; dessa forma, Senua pode pintar e bordar com os grandalhões por um curto tempo. Fica uma cena de filme bonita de se ver, rapaz (quando ninguém te golpeia na cara). Ah, detalhe: chefões se fazem presentes.
Eu não sou lá essas coisas, eu sei
Os colecionáveis são totens (ou lápides, ou "pedras históricas") espalhados em lugares óbvios e outros nem um pouco óbvios que contam passagens da mitologia celta e nórdica, mesclados ao passado da personagem. Vale a pena tentar absorver o que cada um diz, por mais complexos que possam parecer, pois existe um paralelo com as criaturas que Senua enfrenta e com o que está prestes a acontecer com ela, num geral. E ó que maneiro: se você ativa todos os totens, tem direito a assistir a uma cena extra no final.
MORTE PERMANENTE?
No entanto, parece que isso não passa de um blefe. Terrorismo puro. E, se é ou não, funcionou pra me deixar ainda mais nervosa durante o gameplay. Eu diria que é uma ideia genial; mais uma forma de o game brincar com a nossa mente sem que saibamos se aquilo é real ou não, assim como acontece com Senua.
Sobre outros aspectos, bora aplaudir de pé o gráfico e direção de arte de Hellblade, que são apavorantemente bonitos. A tecnologia de captura de movimentos utilizada na protagonista, aliás – ao contrário dos outros jogos, em que existe um longo processo de meses de trabalho –, pôde ser feita em tempo real, capaz de reduzir um bom número de etapas. É impressionante que um time de cerca de 20 pessoas tenha desenvolvido algo tão... TÃO, e com baixo orçamento, rendendo prêmio no Siggraph, a maior conferência de computação gráfica do mundo. Outra coisa que me deixou bege em relação à equipe é que Melina Juergens, quem emprestou a voz e a aparência para dar vida à Senua, não era atriz e nunca tinha passado por uma experiência assim antes. Ela cuidava da edição de vídeos da Ninja Theory e, aos poucos, com uma ajuda aqui e ali e uns testes cá e acolá, acabou com este cargo nada importante, se preparando física e mentalmente num longo laboratório. O trabalho vingou, já que Melina conquistou o BAFTA de Melhor Desempenho neste ano e o The Game Awards, recebido das mãos de Andy Serkis (famoso por interpretar personagens em computação gráfica, como o Smeagol e o Snoke). Recomendo assistirem ao diário do estúdio desenvolvedor, que conta essa história melhor e fará você se apaixonar por ela.
Antes de deixar você louco de vontade de jogar Hellblade, eu não poderia deixar de dizer algo, a meu ver, bem importante: mais do que criar as representações da psicose para nos desestabilizar enquanto jogadores, o game promove através dessa experiência de Senua uma empatia absurda por ela, fazendo com que tenhamos ao menos uma noção do que é viver sob essa condição, e gerando um grande apelo emocional que une narrativa brilhante e personagem cativante. No menu principal do jogo, você ainda pode assistir a um pequenino documentário sobre psicose.
Existe um discursos de aceitação muito bonito sobre abraçar a própria escuridão. Não só em relação a si, como aos outros, e o que de bom, mas o que principalmente de ruim, acontece em nossas vidas. Afinal, o que não nos mata, nos fortalece. E, se não matou, resta seguir em direção a novas histórias, mas com novos pés.
"As pessoas pensam que o mal é uma força sobrenatural invisível e invocam os deuses por proteção. Mas o mal pode vir da mão por trás dos deuses; uma mão familiar, fria e cruel."
Nota: