Netflix, essa grande recalcada.
Provavelmente enquanto chorava por horas na cama, que é lugar quente, o serviço de streaming mais querido do Brasil sofreu o arrependimento de ter recusado colocar The handmaid's tale em seu catálogo. Afinal, deve doer o coração ver a concorrência levar uns Emmys pra casa, né, mores? E aí que Margaret Atwood, autora do livro no qual a série se baseou, também tem uma outra obra que virou minissérie recentemente pela emissora canadense CBC, Alias Grace, chamando a atenção da Netflix - que rapidinho tratou de tê-la entre as novas aquisições.
Alias Grace não repetiu o sucesso de sua irmã, mas não por falta de qualidade, e sim porque provavelmente está sendo subestimada quando as pessoas acessam a home de suas contas. Dividida em apenas 6, porém sólidos episódios, a minissérie conta a história real de Grace Marks: uma jovem irlandesa de classe média-baixa que decide tentar a vida no Canadá. Contratada para trabalhar como empregada doméstica na casa de Thomas Kinnear, ela é condenada à prisão perpétua pela participação no assassinato brutal do seu patrão e da governanta da casa, Nancy Montgomery, em 1843. Passados 16 anos desde o encarceramento e internação da imigrante em um manicômio, o psiquiatra Simon Jordan, contratado por um grupo de pessoas que anseiam pelo perdão à Grace, fará de tudo em sessões de terapia para que ela recupere suas memórias, revelando se houve de fato culpa sua nos crimes. Teria Grace sido justamente incriminada ou foi coagida por James McDermott, o cocheiro rabugento da propriedade, quem verdadeiramente teria sujado as mãos de sangue?
Vou mandar a minha real: pra mim, essa resposta é o que menos importa; o mais interessante de Alias Grace é a perspectiva de uma sociedade extremamente patriarcal, burguesa e machista. A minissérie trabalha personagens femininas vivendo seus papéis de gênero dentro desse universo, e é quando pensamos em crítica feminista que ela se assemelha a The handmaid´s tale.
Grace conta ao dr. Jordan sobre sua viagem marítima de meses da Irlanda ao Canadá, de como perdeu a mãe, se viu protetora de seus outros irmãos mais novos e foi alvo da violência do pai. Quando foi forçada a trabalhar por ele, foi libertação, descobertas e solidão ao mesmo tempo. Em seu primeiro emprego, conheceu a inteligente e questionadora Mary Whitney, de quem se tornou melhor amiga e confidente. Mas foi através dessa amizade que Grace também conheceu outras facetas da violência contra a mulher: abusos, relação patrões-empregadas, descrença e opressão, em simbolismos que aparecem constantemente nas cenas, do homem rico que engravida a moça pobre ao aborto forçado e trágica morte. Mary era a representação do amor que Grace encontrou em sua rotina pesarosa e desesperançosa, jogado no lixo por uma força maior que nem tão cedo seria subvertida.
Grace também fala de Deus, de como uma mulher deve se comportar e que não importa como um homem apareceu no quarto de uma moça no meio da noite, a culpa sempre será dela. Conta sobre como foi parar na casa do sr. Kinnear, sobre como trabalhava arduamente na propriedade e sobre sua relação ora espinhosa, ora agradável com Nancy Montgomery, que, outrora governanta do senhor da casa e agora amante, temia que perdesse seu posto socialmente melhor para alguém mais jovem.
E, enquanto conta período por período de sua vida que antecederam sua condenação, Grace costura uma colcha de retalhos sem parar. Entre um relato e outro, a câmera foca em seus dedos ágeis, na agulha e no que aquele trabalho em suas mãos está virando. Uma analogia bem conveniente à forma como Grace conversa com dr. Jordan; sempre recatada, frágil e doce aos olhos do médico, ela costura, costura e costura a sua versão da história enquanto pessoa desmemoriada, fazendo com que ele e nós, espectadores, não saibamos discernir entre a honestidade de suas palavras e a manipulação consciente, colocando imagem x discurso em um cenário totalmente dúbio.
Essa dúvida sobre Grace Marks ser ou não o ideal de mulher na época – obediente, bonita e casta – é a mesma que cai sobre as mulheres ainda hoje, vítimas ou não. Sarah Gadon, essa florzinha poderosa que deu vida à minha Sadie na minissérie 11.22.63, arrasou na pele de Grace ao dosar cada nuance do que a personagem mostra ou não quer mostrar em cena. O roteiro meticuloso da experiente Sarah Polley e a direção igualmente precisa da Mary Harron completam o resultado final. EITA EQUIPE FEMININA MARAVILHOUSER!
Aliás, foram esses padrões de gênero que impactavam a sociedade da época que acabaram influenciando no julgamento de Grace. Há quem pense que ela ficou louca e/ou sofria de algum transtorno de personalidade, mas acho que ela simplesmente aproveitou o papel que lhe foi imposto para escapar da Justiça. Ela soube conquistar a simpatia de um júri formado exclusivamente por homens encenando, justamente, uma performance de gênero esperada por todos: uma mulher vulnerável e ingênua, manipulada pelo real mentor do crime. Historiadores do caso já levantaram essa hipóteses, argumentando que os julgamentos criminais eram submetidos a ideologias e visões de mundo masculinas, deixando de fora qualquer controle que as mulheres poderiam ter sobre os procedimentos legais. Mesmo envolvida no assassinato dos patrões, Grace Marks era vítima. Mais relevante do que ser inocente, era parecer inocente e incriminar outro, como a personagem mesmo sugere em determinado momento da série: “Se há um crime, as pessoas querem um culpado. Certo ou errado, não importa.”
Ainda que Grace seja de fato manipuladora, ela mentia em seus relatos não só para tirar o dela da reta em relação ao que aconteceu, mas para sobreviver. E, ao longo de quase duas décadas aprisionada, ela deve ter melhorado muito essa habilidade. Grace parece escolher com parcimônia o que vai dizer e o que prefere deixar no ar. Por isso, Dr. Jordan começou analisando-a, mas terminou a minissérie sendo analisado. Em certa cena, nossa protagonista afirma que é comum os homens sentirem prazer através do seu sofrimento; do sofrimento feminino. Os mesmos que cometem a violência são os que querem bancar os heróis e salvá-las, e é desses dois lados da moeda que vem o regozijo (catei no dicionário um sinônimo e achei bonito). Dr. Jordan parece estar cheio de boas intenções, mas não é ele que quer salvá-la dos males de suas memórias e sofrimento pelo passado? Grace, no entanto, não quer.
Mais uma vez, Grace é deixada em paz – se assim posso dizer – graças a uma nova performance, porém mais complexa e engenhosa. Através das mulheres que encontrou e que a marcaram ao longo de sua vida – ela própria, frágil e trabalhadora; Mary Whitney, atrevida e revoltosa; e Nancy Montgomery, independente e vaidosa –, ela pôde se construir e se reinventar para viver a vida que sempre ansiou. Não é à toa que, ao final da história, Grace mostre a colcha que passou costurando nas sessões com o psiquiatra: usando retalhos das roupas dessas três personagens femininas que ajudaram a moldá-la, formando a figura de um pássaro. Liberdade.
Grace também está firme o bastante para quebrar a quarta parede, levantar o olhar até a câmera e encarar diretamente o público: e aí, qual o seu veredicto? No fim das contas, talvez a única culpa dela foi ter nascido mulher.
"Você ainda não entende que a culpa vem até você não pelas coisas que você faz, mas pelas coisas que outros fizeram a você."
"Assassino é meramente brutal. É como um martelo ou um pedaço de metal. Eu prefiro ser uma assassina a ser um assassino, se essas forem as únicas escolhas.”