Com a cabeça abaixada, olhos tristes e uma voz murcha, venho confessar: enfim terminei o segundo livro do ano.
Do ano, manas.
O que aconteceu comigo em 2017 foi a junção de três coisas definidoras: desenhar mais no tempo livre, jogar videogame quando não tô desenhando no tempo livre, e receio de usar o Kindle no ônibus, que é basicamente o lugar onde mais ponho minha leitura em dia, no caminho de ida e volta até o trabalho. Eu costumava ler cerca de um livro por mês até o ano passado. Por isso, é com profunda indignação comigo mesma (rs), que me dou conta deste status atual. Como diriam os adultos quando eu era adolescente e achava isso a maior bobagem do mundo: "o dia podia ter 50 horas".
A escolha de O conto da Aia, de Margaret Atwood, foi, como dá pra imaginar pelo título do texto, influência da fantástica série The handmaid's tale, sobre a qual falei aqui. Trata-se de uma distopia em que o governo dos EUA, após sofrer um golpe de um grupo terrorista religioso, torna-se a República de Gilead: teocrática, totalitária e que tem as mulheres como principais vítimas de sua opressão. Sem quaisquer direitos, elas deixam de ser cidadãs e passam a ser propriedade do governo. As mais velhas ou não doutrinadas são enviadas às Colônias para recolher lixo tóxico e morrer em pouco tempo. As casadas com comandantes do alto escalão são simplesmente as Esposas, desfrutando de uma vida de regalias. As Econoesposas não são ricas, mas possuem alguma posição social por estarem associadas a um homem. As que não são casadas e têm alguma utilidade podem se tornar Marthas, que são as cozinheiras e governantas das casas dos comandantes; Jezebels, que vivem como escravas sexuais em hotéis transformados em bordéis; ou, caso sejam férteis em uma sociedade onde a taxa de natalidade é praticamente zero, tornam-se Aias. Esse é o caso da nossa protagonista, Offred.
Sem poder usar seu verdadeiro nome em Gilead, Offred é uma junção de of + Fred, o comandante da casa para a qual serve, um batismo que a qualifica como alguém que pertence a outro. Como rara mulher fértil, a função de Offred é basicamente procriar. Por isso, uma vez ao mês, no seu período fértil, ela é estuprada pelo seu comandante em um ritual chamado de Cerimônia - tudo sempre com cunho religioso -, acompanhado de sua esposa.
Aias são proibidas de conversarem, mesmo em companhia de outras Aias em seus passeios semanais até o mercado, a não ser sobre o tempo, sobre a paisagem ou para exaltar a crença instaurada e o regime do país. Escapar é impensável: há patrulhas armadas de Anjos por toda parte, rodeando rotas de fuga, além da onipresença de Olhos - espiões que deduram para o alto escalão pessoas que saem das regras de vida. No Muro, frequentemente são pendurados corpos de gente sentenciada, como um lembrete do que acontece com quem tenta sair da linha. Até mesmo suicidar-se é uma tarefa difícil: as mulheres não têm acesso a objetos cortantes ou lugares onde poderiam se enforcar.
Ou seja: todas estão condenadas a viver esse inferno.
O conto da Aia são relatos de como Offred sobrevive à sua rotina, divididos em capítulos densos que revelam a capacidade invejável de escrita de Margaret Atwood. O clima é sempre de desesperança, sofrimento e tristeza, mesmo que, em determinados momentos, Offred descubra um recado lascado no rodapé de seu quarto ou tenha permissão de usar um hidratante ou ler uma revista - coisas tão, tão banais em uma outra época, mas que agora são artigos de luxo - e até proibidos. Em breves instantes de resgate de sua identidade, Offred luta para se manter sã e para se lembrar de si mesma, de quando tinha uma filha e um marido, e é essa dúvida sobre o destino de ambos que a ajuda a tentar se encontrar.
Não é um livro agradável de ler, apesar da riqueza narrativa, que deixa um gosto amargo e a marca de um tapa bem vermelho, no rosto. Principalmente, claro, se o leitor for uma leitora e tiver o mínimo de imaginação para se colocar no lugar das personagens. Por mais que a história soe absurda, ela é assustadora justamente por não ser algo tão distante da nossa realidade; hoje, ainda que o Brasil abrace movimentos progressistas que lutam por minorias sociais, existe uma onda conservadora que infelizmente vem ganhando força (o chamado backlash) como "resposta" a esses avanços. Por isso, mesmo publicado na década de 1980, O conto da Aia continua atual ao nos propor reflexões sobre a mulher na sociedade, a importância do pensamento feminista, da sexualidade, respeito, revolução e até do meio ambiente.
Ficha técnica
Editora: Rocco
Tradutora: Ana Deiró
Páginas: 368
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