Um combo é um combo, né, mores? Primeiro, é uma série documental que aborda um crime não solucionado. Segundo, é dos criadores de Amanda Knox e Making a murderer. Terceiro, é uma obra original Netflix; ou seja, tava dando sopa lá na home da plataforma, só me esperando dar o play.
O que significa que passei sete horas do meu último fim de semana enfurnada no quarto, de cabelo sujo, vivendo de pipoca e guaraná. De novo.
Desde sempre eu sou fascinada por histórias de crimes complexos, serial killers, mistérios, casos inconclusivos e, por isso, foi grande a minha alegria e surpresa ao abrir a Netflix e me deparar com uma nova obra original andando por esses caminhos. The keepers, que estreou no dia 19 de maio provando que não é preciso computação gráfica, castelos e dragões para criar uma abertura que nunca dá vontade de pular, traz a história real (claro, dã) da freira Cathy Cesnik, desaparecida e encontrada morta 2 meses depois em Baltimore no ano de 1969. Apesar das circunstâncias estranhas – um bairro extremamente pacífico e sem índices de homicídios; seu carro estacionado próximo ao seu apartamento, sujo de lama e com metade da bunda na rua –, ninguém encontrou o assassino. Com o passar dos anos, o caso ficou envolto por uma atmosfera de lenda urbana, sempre lembrado com lástima e sentimento de injustiça pelos moradores locais. Principalmente por duas senhoras em especial, Abbie e Gemma, ex-alunas aposentadas de Cathy que decidiram investigar por conta própria o ocorrido com sua professora favorita, convictas de que seriam capazes de chegar a uma conclusão. Mas, à medida que desenterravam a história da freira, descobriam uma cadeia de segredos horríveis escondidos no seio católico da cidade.
A teoria mais lógica era que Cathy estava prestes a escancará-los para o mundo.
[A partir daqui, tratarei de assuntos que podem ser considerados por alguns como spoilers, apesar de eles estarem fortemente sugeridos no trailer da série e em algumas sinopses divulgadas.]
Baltimore sempre foi uma cidade americana essencialmente católica. As famílias, criadas para comparecerem à igreja semanalmente e se sentirem honradas com tarefas envolvendo missas e congregações, enxergavam as figuras dos padres como símbolos de poder e respeito máximo. E lá, em Baltimore, se encontrava um dos colégios femininos de Ensino Médio mais prestigiados da região – o Seton Keough, administrado pelas irmãs de Notre Dame e onde Cathy dava aulas de inglês.
A partir daí, durante pelo menos três episódios, The keepers parece se aprofundar mais na história em torno desse contexto do que no assassinato em si. Alternando reconstituições e depoimentos das senhorinhas-detetives, de pessoas próximas de Cathy, de policiais da época e de jornalistas, a série revela uma figura importante do processo que parecia ser a chave para entender o que ocorria entre a Seton Keough e a própria irmã: Jean Wehner. Jean foi uma ex-aluna do colégio que denunciou, nos anos 1990, inúmeros relatos de abusos sexuais cometidos pelo padre Joseph Maskell, conselheiro e capelão do lugar. Na época apresentada à mídia anonimamente como "Jane Doe", é a primeira vez, em The keepers, que Jean Wehner revela sua verdadeira identidade.
Sabe o conceito de deep web? Pois isso era só a ponta do iceberg. Linkando os crimes de pedofilia à aura luminosa da irmã Cathy, sua bondade tão retratada por quem esteve em seu convívio e sua sensatez sobre justiça e hipocrisia, o documentário faz o que ninguém teve coragem de fazer nestes quase 50 anos desde o assassinato: dar voz às vítimas – às várias que surgiram junto de Jean Wehner – com dignidade e humanização. Ao mesmo tempo em que grita, com horror, o silêncio e acobertamento da Igreja, do judiciário e da polícia diante de toda a repercussão.
Por isso, se você achou o filme Spotlight difícil de assistir por chutar o balde de histórias escabrosas de padres pedófilos em Boston, The keepers é muito mais. Mas ela merece, por esse motivo só, ser assistida. Ficamos diante da dor nua e crua de sobreviventes, em closes na tela, calados tanto tempo por suas próprias memórias, crentes na ideia de que eram merecedores de todo sofrimento, fruto de seus pecados. É incrivelmente relevante que a Netflix possa varrer pra fora do tapete tanta sujeira que se esconde em tantos outros milhares de casos sem culpados para julgar.
The keepers é meticulosa ao explorar o máximo possível de "lados" e teorias, o que acabou deixando alguns episódios longos e maçantes demais. Mas, sinceramente, não sei nem se isso seria um defeito ou mais uma qualidade da série.