19 outubro 2015

Lisbeth Salander está de volta no polêmico "A garota na teia de aranha"

postado por Manu Negri


A trilogia sueca Millenium, formada pelos volumes Os homens que não amavam as mulheres, A menina que brincava com fogo e A rainha do castelo de ar, vendeu quase 100 milhões de exemplares no mundo todo. O primeiro deles foi eleito o melhor romance policial dos últimos 10 anos e sua protagonista, Liesbeth Salander, virou uma das personagens e anti-heroínas mais queridas pelo público literário. Pena que Stieg Larsson, autor das obras, não viveu para ver todo esse sucesso. Pouco tempo depois de entregar a trilogia para a editora, ele sofreu um infarto fulminante.

Enquanto ficamos órfãos de Lisbeth, Mikael Blomkvist e cia, acontecia uma disputa judicial. Stieg deixara em seu computador os manuscritos da sequência da história, que ficaram sob os cuidados de sua viúva, Eva Gabrielsson. O problema é que, por mais que Eva e Stieg tenham vivido 32 anos juntos, ela não teve direito a nada da herança porque os dois não eram casados oficialmente. Vida sacana. Aí, o pai e o irmão do escritor acabaram vencendo a batalha pelos direitos da continuação da série Millenium, mas sem levar nada dos manuscritos, já que Eva não é boba e não liberou nada. O jeito foi contratarem alguém para a missão de escrever um novo livro, partindo do zero.

O escolhido foi o jornalista David Lagercrantz, autor da biografia best-seller do jogador Zlatan Ibrahimovic. Quando eu soube da notícia de que finalmente teria em minhas mãos o Millenium 4, A garota na teia de aranha, senti um misto de euforia com receio. Mais de euforia do que de receio, na verdade. Afinal, David provavelmente não seria um pica das galáxias como o Stieg, mas certamente tinha bagagem o suficiente pra esse desafio.

Bom. Eu sei que era injusto exigir que David Lagercrantz tivesse o mesmo estilo de Stieg Larsson. Eu só não imaginava que fosse me incomodar tanto com o desenrolar da história. E é aí que entra a polêmica.

Sei que muita gente achou A garota na teia de aranha à altura dos outros três volumes, e outras pessoas preferem avaliá-lo apenas como “méh”. Acho que me encaixo neste último grupo, infelizmente. Vamos lá: o livro é fácil de ler e te prende, sim, do início ao fim, mas não tem nem de perto a riqueza narrativa com que Stieg Larsson me conquistou. No início achei que era implicância da minha parte, que eu estava sim fazendo comparações o tempo inteiro, mas agora confirmo o meu veredito.

“A hacker Lisbeth Salander e o jornalista Mikael Blomkvist precisam juntar forças para enfrentar uma nova e terrível ameaça. É tarde da noite, e Blomkvist recebe o telefonema de uma fonte confiável, dizendo que tem informações vitais aos Estados Unidos. A fonte está em contato com uma jovem e brilhante hacker - parecida com alguém que ele conhece. Blomkvist, que precisa de um furo para a revista Millennium, pede ajuda a Lisbeth. Ela, porém, tem objetivos próprios.”

A sinopse promete entregar uma trama e tanto, mas não me envolveu tanto quanto eu gostaria. Os diálogos diretos, com raras descrições do contexto, me causaram muito desconforto. Mikael e Lisbeth mais pareciam coadjuvantes da trama do que personagens ativos, encontrando pistas para a investigação do mistério fornecidas de forma muito simples e fácil: bastava Mikael se sentar com alguém ao longo de duas ou três páginas de diálogos que mais parecem monólogos, equilibradas com poucas falas do interlocutor, para conseguir umas pobres conexões de que precisava. Bem ao contrário dos outros livros, em que a dupla fez um trabalho digno de detetive. Em A garota na teia de aranha, a ligação entre os dois inclusive me pareceu um pouco fraca. Ouso até dizer que Lagercrantz modificou um pouco a personalidade da Lisbeth, deixando-a mais empática do que o normal; uma incoerência diante de tudo o que ela passou anteriormente.

"Honre-me, porco!"
As incoerências não terminam aí, aliás. O autor interferiu no passado de Lisbeth e da própria Millenium de uma forma que me pareceu bem artificial, como que apenas para encaixar convenientemente tudo o que ele havia pensado, usando um personagem que consegue discorrer sem o menor problema sobre detalhes específicos que ele normalmente não saberia, após sofrer dois derrames. Em outra passagem, um motorista é surpreendido na rua por duas pessoas entrando em seu carro, com uma delas lhe ordenando para que dirija o mais rápido que puder. Além de desviar de pessoas e outros carros, ele consegue observar detalhes do que acontecia no banco de trás com perfeição suficiente pra repassar pra polícia mais tarde.  E uma Lisbeth criança com unhas grandes, alguém consegue imaginar? Unhas grandes que perfuram o pulso de uma pessoa até o osso? Não fode, Lagercrantz.

Apesar de haver intrigas internacionais, espionagem, crimes e o feminismo recorrente dos livros de Stieg Larsson, também senti um pouco de falta de alguma crítica social mais pungente. Nas últimas 150 páginas, a ação, graças a Deus, é mais intensa e deixa o ritmo do livro mais agradável, culminando num desfecho que responde a maiorias das perguntas, amarra umas pontas e propositalmente deixa outras soltas, abrindo margem para um quinto volume da série (agora, série) Millenium.

Se A garota na teia de aranha fosse um livro autônomo, talvez o sucesso fosse recebido com mais facilidade. Mas, como continuação de uma trilogia que criou uma legião de fãs ardorosos, acho que David Lagercrantz precisa comer mais feijão com arroz pra acertar na mosca da próxima vez. Apesar dos pesares, vou esperar essa próxima vez com ansiedade – obviamente menor –, pelo simples motivo de que sempre vale a pena matar as saudades de Lisbeth e Mikael.




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