As críticas positivas sobre o filme começaram a pipocar desde sua passagem em festivais internacionais. Quando estreou no Brasil, tratei de marcar uma data pra assistir. Não deu certo. Entrei de férias, vim pra Vitória e cacei o único cinema que o estava exibindo, em meio a sessões lotadas. É uma pena que "Que horas ela volta?" tenha tão pouco espaço no circuito comercial; se você tiver sorte, antes que renovem os filmes em cartaz nesta próxima quinta-feira, compre seu ingresso: o filme é belíssimo.
Quem só sabe torcer o nariz pro cinema nacional está perdendo uma obra-prima. Quem aproveita pra falar mal da Regina Casé, então, perde também uma atuação sensacional. Ela interpreta Val, uma empregada doméstica nordestina que se mudou para São Paulo a fim de conseguir melhores condições de vida e que trabalha há mais de 10 anos para os mesmos patrões, morando na mesma casa. Quando sua filha (vivida pela também ótima Camila Márdila) dá a notícia de que está indo para a cidade prestar vestibular, precisando de um lugar para ficar, a dinâmica da família começa a sofrer alguns impactos.
Na primeira cena do filme, vemos Val cuidando e brincando com Fabinho, único herdeiro (tô fazendo a revista Caras) de "dona" Barbara e "doutor" Carlos, a quem ela trata como seu próprio filho. Percebemos o carinho e a relação entre os dois que se estabelece em contrapartida à ausência da mãe no dia a dia do menino, que pergunta "que horas ela volta?"
Val é considerada "praticamente da família". No entanto, não come na mesma mesa que os demais, não dorme no quarto de hóspedes, nunca usa a piscina da casa e sempre atende a um pedido quando solicitada. Para ela, isso é completamente natural; está presente naquela cartilha invisível passada de geração para geração, perpetuando regrinhas de um período escravocrata que apenas se atualizam conforme os anos passam. Val aceita o seu lugar como tal, e isso é mostrado não apenas na postura da personagem, mas na escolha de enquadramentos da diretora Anna Muylaert, que limita o espaço da empregada na casa e deixa claro a que cômodo ela pertence: a cozinha. É possível notar isso, por exemplo, quando os patrões a chamam para recolher a mesa e vemos tudo através da porta, sob a perspectiva de Val e como uma forma de restrição, e quando ela passa servindo convidados de uma festa na casa, sem ser notada, atrás da bandeja.
Jessica, a filha de Val, interfere nessa relação quando confronta a mãe sobre sua submissão, retratando muito bem as questões de classes no Brasil e a ascensão social que se deu nos últimos anos. Diferentemente da mãe, ela é astuta, destemida e não aceita outro destino para si a não ser o de ter um diploma, uma vez que com esforço e orientação correta teve oportunidades para estudar.
Jessica cruzar o território estabelecido há anos obviamente ali dentro causa desconforto na patroa, Barbara, que passa a mudar de postura inclusive em relação a Val e não se cansa de buscar motivos para intimidar a garota e lembrar à sua me quais são suas limitações. Há uma cena com um diálogo bastante simbólico, aliás, em que Barbara diz para Val salientar com Jessica que sua hospedagem se restringe "da porta da cozinha pra lá (para a porta dos fundos), no que Val diz: "Tá, da porta da cozinha pra aqui.".
Mesclando drama com humor em momentos perfeitamente pontuais, "Que horas ela volta?" tira a sujeira debaixo do tapete e apresenta uma realidade que é um verdadeiro tapa na cara. Já levou o prêmio de melhor atriz (Casé e Márdila) na mostra World Cinema no Festival de Sundance, nos EUA, e o Prêmio do Público na seção Panorama do Festival de Berlim. Além disso, com os comentários que tem gerado, é possível que o longa represente nosso país na disputa pela indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Depois de tantos anos desde Central do Brasil, seria uma delícia ver um filme brasileiro na lista de indicados, mas, melhor ainda, é presenciar o sucesso de uma obra dirigida, roteirizada, montada, fotografada, co-produzida e escalada por mulheres, que conta a história de uma mulher. ❤ #visibilidade