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Naquele momento, eu só tive uma sensação estranha. Engraçada, eu diria, o que me fez virar a sola do pé e ver o sangue. Foi aí que comecei a sentir dor.
Eu tinha 11 ou 12 anos quando minha estadia em João Neiva, interior do Espírito Santo e cidade natal da minha família, teve que ser interrompida. Fui com minha mãe visitar a minha avó e levei duas amigas e, na época, vizinhas, para conhecer aquele lugar encantador, cujas maiores atrações eram a igreja e o clube aquático recém-inaugurado de 100 m².
Portanto, quando o humilde circuito turístico se encerrou, nosso velho amigo chamado Tédio resolveu dar as caras, nos obrigando a achar um pouco de emoção em jogar pedrinhas na parede da padaria, colada no quintal da casa de vovó. Eu, não satisfeita e sedenta por mais adrenalina naquele resto de férias, decidi fazer o que me deixaria amargamente arrependida pelos próximos 3 dias: pular o portão e dar um susto nas meninas.
Olhei para as duas, sentadas de costas pra mim. Me aproximei silenciosamente. Era fácil, bastava apoiar um dos pés na grade e pegar impulso pra saltar.
O que eu não tinha percebido era que a grade era de lanças.
Pontiagudas.
Demorei cinco segundos pra entrar em pânico: o tempo exato pra se dar conta de que a lança tinha ultrapassado o chinelo de um palmo de espessura, e pra ver o sangue jorrar na velocidade dos meus pesadelos.
Larguei as meninas pra trás. Fodam-se as meninas. Comecei a atravessar a sala da casa num pé só, no início daquele choro ridículo balbuciante de uma criança de 4 anos. Minha mãe, com 89% do cérebro ocupado com a TV, me mandou calar a boca. A novela parecia importantíssima. Mas, um olhar mais atento ao meu estado e, mais especificamente, ao rastro de sangue no chão atrás de mim, a fez sair do sofá num salto digno de causar inveja em qualquer Pinscher. Mamãe abriu as duas portas da frente (pensando bem, acho que chutou) clamando por ajuda a todos que passavam pela rua, sugerindo que alguém da casa estava em trabalho de parto.
Depois disso, oh, um borrão. Lembro de alguém me carregar no colo até um carro, de chegar ao único hospital de João Neiva e de mamãe desqualificar incansavelmente minha ideia brilhante de tentar pular o portão. Depois, me colocaram em uma mesa fria de inox, em um dos consultórios. Eu segurava meu pé com o ardor de quem abraça o último pote de Nutella do supermercado. Sentado à mesa, um médico plantonista suado, com a cara de Buldogue apoiada na mão, me encarava com interesse zero. Se não dava pra ficar pior, era só olhar para seu crachá pendurado no jaleco: as letras verdes anunciavam, com escárnio, "João M. - Ginecologista". Era trabalho de parto.
– Como assim não vão dar ponto?! – ouvi minha mãe perguntar.
– Ué, mas ela não quer que mexam no pé. – na verdade, achei que era o dr. João que não queria se levantar da cadeira. Até senti um apreço por ele.
– Mas tem que dar!
– Não vão dar, não! – gritei.
Creio que muita coisa nessa vida se ganha no escândalo, e evitar uma intervenção cirúrgica deve ser uma. Consegui sair imune daquele ambiente hostil, descosturada, assim que a enfermeira limpou o sangue, a ferida e enfaixou meu pé com 200 metros de gaze. Mas não me senti vitoriosa. Além de ter estragado o último passeio das férias, fui intimada a ir em um hospital mais decente assim que voltamos pra casa de vovó e bateram o martelo em assembleia extraordinária. O destino das minhas amiguinhas naquele dia, jamais soube. Sei apenas que nossos caminhos se desviaram e, 3 horas depois e mais perto de Vitória, eu estava entrando novamente em um consultório diabolicamente branco e cheirando a álcool.
Dr. Nelson não era ginecologista. Também não achava necessário dar ponto no pé. Realmente, muito, muito simpático, mesmo me mandando deitar de bruços numa cama. Mencionou a palavra "anestesia". Olhei suplicante pra minha mãe, me sentindo enganada, já com lágrimas prontas pra descer. Ela, sem conseguir mentir, me olhou de volta com sofrimento e ofereceu a mão pra eu apertar.
– Fizeram bem em não costurar no outro hospital. Do contrário, seu pé amanhã estaria com o dobro do tamanho.
Tudo bem, doutor. Bravo. Mas e essa anestesia aí?
– Só que, pra não infeccionar, vamos precisar limpar direito o ferimento.
Foco em "direito".
– Manuela, por favor, quando eu pedir, tussa pra mim.
– Oi?
– Dá umas duas tossidinhas, pra anestesia pegar.
Preferi não contestar o uso da anestesia, nem o porquê de ter que passar por essa situação constrangedora. Como uma boa criança com medo de agulha, já estava soluçando antes de qualquer coisa começar.
– Pode tossir.
– Cof, cof.
A primeira espetada quase me fez dar um coice involuntário na cara do dr. Nelson. Apertei a mão de mamãe.
– Muito bem. De novo.
– Cof. Buuh, buuuh... cof.
Apertei com mais força, tentando em vão fazer meu cérebro dar menos atenção ao que acontecia lá embaixo. Depois de aplicar a anestesia em volta de todo o buraco do meu pé nesse método bem filho da puta, dr. Nelson começou a preparar o próximo instrumento de tortura. Exausta, olhei de rabo de olho para aquelas mãos que agora traziam uma tesourinha de pontas afiadas – contrariando todos os procedimentos de segurança indicados pela Eliana em seus programas matinais.
– Pronto, hora de limpar – ele disse, enrolando gaze molhada na ponta da tesoura – Não se preocupe, não vai doer. Agora seu pé já deve estar até dormente.
Espere aí, dr. Nelson. Não tinha nada dormente. Me sentia exatamente igual a quando entrei ali: dolorida e assustada. Mas de nada adiantava, não é mesmo? Dr. Nelson enfiou a tesourinha sem dó, manipulando-a como uma manicure faria com seu alicate de arrancar cutículas, mostrando que sensibilidade era algo em falta naqueles plantões.
Mordi a mão de mamãe. Vi estrelas, constelações, o inferno; vivi uma experiência de quase-morte. Meus uivos atormentados certamente alcançaram todas as alas do hospital, num pedido inútil de socorro – o que foi provado quando cruzei a sala de espera em direção à saída, alguns intermináveis minutos depois, e todos os olhares se voltaram a mim. Não esperava ganhar nenhum pirulito por bom comportamento, mas dr. Nelson ficou devendo um pedido de desculpas.
Sentada numa cadeira de rodas, vi o reflexo da minha humilhação estampado na janela traseira do carro: a cara de quem apanhou por 5h num ringue, por trás da vergonha de ter tentado burlar as regras de boa menina uma vez na vida.
No fim das contas, aprendi a tomar banho sem molhar o pé, a andar de muletas e a não confiar tanto em médicos. Aprendi a lição. Mas, como depois da tempestade o sol sempre aparece, aprendi também que tudo na vida tem sua vantagem: ganhei atestado pra não fazer aulas de educação física na escola por um bom tempo.
13 dezembro 2014
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Coisas da vida
Travessura
postado por Manu Negri
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